Artigo - A magistratura e o suicídio - Por Renato Nalini

Rômulo Cardoso Quinta, 07 Março 2019

Artigo - A magistratura e o suicídio - Por Renato Nalini

A MAGISTRATURA E O SUICÍDIO

 

Por Renato Nalini 

 

Nunca absorvi o suicídio como algo natural. Sempre o considerei um mistério, além de uma tragédia.

 

Antes de ingressar na Magistratura, os episódios mais próximos me marcaram bastante. A colunista social charmosa e elegante que, mal sucedida numa cirurgia plástica de nariz, resolveu tirar a vida. A esposa traída ao tomar conhecimento do adultério do marido.

 

Mas nada foi tão forte quanto a experiência vivenciada a partir de minha carreira como juiz.

 

Logo na primeira comarca, no primeiro Natal, vejo-me às voltas com o suicídio de um colega, que já passara por ali e estava a evidenciar um sintoma de angustiante depressão. Esperou que sua promoção fosse publicada no Diário Oficial e então entrou no chuveiro e se auto-imolou com inúmeros golpes de faca.

 

Acreditou que assegurara à família pensão compatível, olvidando-se de que precisaria tomar posse do novo cargo para que a promoção se consubstanciasse. Não me esqueço da viúva, desesperada, a acompanhar a retirada dos inúmeros autos de processo de sua residência, logo após o infausto: – “Descanse tranquilo agora! O que o atormentava foi embora…”.

 

Em seguida acompanhei o drama dos magistrados cujos filhos praticaram suicídio. Varões de Plutarco, no sentido de serem juízes paradigmáticos. O peso de ser filho de um exemplo desordenou a cabeça desses jovens?

 

Tive contato com esses pais. Com alguns, mais do que o mantido com outros. Meu “feeling” é que tinham sido rigorosos, exigentes em relação à performance escolar de suas crias. Foi o que me levou a flexibilizar a tendência correcional que teria mantido em relação aos meus próprios filhos.

 

Mais tarde, comoveu-me o amigo que me procurou para conversar e que, ao verificar o volume de processos que eu tinha para examinar, apenas pediu o autógrafo num de meus livros e se despediu. Naquela semana, atirou-se do consultório do psiquiatra que o acompanhava.

 

Tenho remorsos por não ter sido mais aberto, mais acolhedor, mais fraterno a quem já deveria estar com problemas muito sérios.

 

Recentemente, assisto contristado a dois outros suicídios de desembargadores prestigiados, com carreira exitosa, nome de respeito. Ambos, inexplicavelmente, dominam o instinto de subsistência e sacrificam sua vida que, aos olhos alheios, seria uma trajetória gloriosa.

 

Isso já aconteceu até com Ministro do Supremo Tribunal Federal, o que evidencia que a carreira não é tudo. Ao contrário: é uma parte muito insignificante de um todo mais valioso, que é o conteúdo substancial dessa dádiva insuscetível de adequada avaliação que é o dom da vida.

 

Sei que há carreiras mais vulneráveis ao suicídio, como a dos policiais militares. Há enorme incidência de casos, sobretudo quando já inativos.

 

Algo aproxima o universo da Magistratura dessa constatação no plano da milícia. É que a carreira no Poder Judiciário é toda estruturada rumo ao topo. Durante algum tempo, comentávamos em São Paulo que a carreira fora substituída por “correria”. Pressa em chegar, urgência em obter os píncaros. Para breve momento de glória, a tática das homenagens, os rapapés, as honrarias. Em seguida, a realidade: a compulsória.

 

Com ela, o esquecimento, o abandono, a fuga dos amigos que foram produzidos apenas no desempenho do cargo e da função.

 

Não posso me esquecer de um grande nome da Magistratura Paulista, cujo aniversário em 31 de dezembro, data ingrata, era celebrado em regime de “open door”: a esposa montava grande mesa, com todo o carinho, para receber os amigos que lotavam a linda residência, do amanhecer até altas horas.

 

O primeiro aniversário após a “expulsória” viu o sumiço dos comensais, a fuga das moscas interesseiras. Pouquíssimos os que se lembraram da pessoa, enquanto tantos usufruíram da autoridade.

 

Por isso é que ao menos as Associações deveriam investir mais no preparo do juiz para o momento em que ele tem de deixar a jurisdição. São frequentes as hipóteses de profunda depressão, de comprometimento da saúde, do quadro fisiológico gerado pela decepção.

 

Recordar ao magistrado de que nem tudo é cargo ou função. Sob qualquer rótulo existe o que verdadeiramente interessa: uma centelha divina sob uma aparência humana. Será que não aprendemos, durante nosso mister na ciência jurídica, o postulado da “dignidade da pessoa humana”, o supra-princípio norteador de todo o nosso ordenamento?

 

Esse treino para a inatividade, forçada ou voluntária, salvará para outras janelas e perspectivas existenciais pessoas de extrema qualificação. Nada justifica se chegue à tragédia do suicídio. Nem a doença incurável, nem a insolvência, menos ainda o sentir-se abandonado, relegado, a sorver o sumo amargo da ingratidão.

 

Li há pouco o milagre da longevidade na Sardenha, ilha italiana. Após muita pesquisa, os cientistas concluíram que as pessoas chegavam ao centenário – o que é tão difícil – e o superavam, a partir de encontros e conexões afetivas.

 

Os mais idosos eram os que mais conversavam, olhavam nos olhos dos interlocutores, apertavam suas mãos, tocavam seus ombros. Abraçavam-se. Não tinham medo de se relacionar com estranhos. Nem constrangimento de se abrirem com pessoas as quais mal haviam acabado de conhecer.

 

Manter-se como elo irrepetível e indissolúvel dessa enorme teia vital que nos mantém irmanados como semelhantes, é mais importante do que colecionar gloríolas. A verdadeira vitória é a do equilíbrio, da auto-aceitação, da tolerância, da capacidade de encontrar qualidades no Outro e de saber-se parte imprescindível da exuberante coletânea de seres humanos.

 

José Renato Nalini é Desembargador aposentado. Foi Presidente do TACRIM-SP, Corregedor Geral da Justiça e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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